domingo, 16 de março de 2008

O Acre Forasteiro


Escrever sobre o Acre não é tarefa fácil, há tanto o que se falar sobre este pequeno Estado. Seja sua história de luta e conquistas, a epopéia seringueira, os magníficos personagens como Chico Mendes, Padre Paulino, Mestre Irineu, a própria floresta, a bebida mágica e as pajelanças, as 14 etnias indígenas com sua cultura e magia, a atual efervescência cultural e política, enfim tanta coisa.
Quem chega de fora, assim como eu, leva um susto, tanta informação e tanto fascínio que este Estado guarda. O melhor é tentar chegar vazio, sem muitas idéias ou opiniões preconcebidas, pois certamente o Acre lhe frustrará. O melhor é absorver esta rica cultura do jeito que ela se apresenta e de vagarzinho ir entendendo esta terra incrível. Se despir de conceitos e teorias. Ir depressa demais pode causar indigestão.
Por trabalhar com vídeos, tive a oportunidade de conhecer pedaços muito especiais desta terra, assim como moradores da floresta com uma paz de espírito e grandeza de caráter de fazer vergonha, a nós, cheios de cidade. Conhecer os interiores do Acre, os diferentes Acres dentro do Acre, despertou em meu coração a imensidão deste pequeno Estado.
Enquanto escrevo, imagens e lembranças de diferentes viagens por Rios Acreanos inundam minhas memórias. Purus, Muru, Acre, Juruá. Mandins ensopado com água barrenta e os causos do navegante “seo” Minoca. Ayahuasca numa praia do Purus sob um céu cheio de estrelas. Os lagos do Juruá e a água preta do Croa. A forte ribeirinha Maria Inês reclamando que já não há mais peixe como antigamente e o interminável jogo de dominó a caminho dos Kaxinawas do Humaitá.
Navegar em um batelão é entrar em outro ritmo, em outro tempo. Somente a água e o barulho incansável do motor. A paisagem: floresta e campo, samaúma e gado. O batelão sempre sossegado, desliza. A mente então se acalma, boas idéias chegam com o bom ar. Bem verdade que não foi assim ano passado no Purus, a floresta em chamas, o ar fumaça. Mas esta é outra história.
Numa noite de lua, no alto Juruá, em terras ashaninkas, bebi junto com o pajé Moisés o Kamarãpi ( outro nome para o daime), não tinha nem um ano de Acre ainda. Estávamos na varanda de sua casa, com vista para o rio Amônea. Primeiro, um longo momento de silêncio enquanto o pajé fumava seu cachimbo. Sereno.
Senti meu coração se expandir e se conectar com toda a floresta. Imensa floresta. Besteira tentar descrever aqui qualquer sensação a mais. Então, o pajé se levantou e foi até a beira do alto barranco do rio Amônea. Quebrou o silêncio com uma forte cantoria em língua tão antiga e misteriosa. Meu corpo se arrepiou. Alguma coisa estava acontecendo.
Nestes momentos a gente quer explicações, quer decifrar mistérios através da mente racional e nos deparamos com um delicioso ponto de interrogação. A própria manifestação da magia, a própria voz da floresta. Só me restou calar e ouvir os cantos. Só me restou sossegar a alma e me entregar para a magia.
Foi quando o pajé me chamou, fui pra perto dele e sob o rio Amônea, entre uma densa neblina estava uma espécie de arco de energia. Ele deu uma risadinha e falou : “ Fui eu que fiz”. Busquei em minha mente todas as explicações racionais para aquilo que via, simplesmente aceitar a magia é complicado demais. O arco, então, sumiu.
Ele me olhou e riu de novo: “ Vou cantar pra ele aparecer”. Recomeçou a cantoria e o arco voltou. Foi quando de repente me dei conta, olhei em volta de mim: o rio, a floresta, o Moisés e sua Kusma, a cantoria. Um misto de alegria e medo, fascínio e curiosidade. Me dei conta:
“ Meu deus, estou na Amazônia, no Acre.”
Naquele momento, soube que não sairia daqui tão cedo. Soube que tenho muito a conhecer por aqui, muito mais a ouvir do que falar, muito mais aprender do que ensinar. Qualquer primeira impressão sobre Acre será sempre superficial, pois as raízes deste estado estão plantadas sob um solo ancestral e profundo. Sob uma cultura que mesmo sendo muito saqueada permanece viva e se recria sempre. Um estado que se ergueu sob sangue e coragem de milhões de anônimos que vieram pra estas terras em busca de riqueza e sonhos e dela nunca mais saíram. Anônimos que tiveram suas aldeias e terras pilhadas, mas que hoje suas jovens lideranças buscam reafirmar suas culturas e batem no peito com orgulho: “sou índio, sou seringueiro.”


( escrito para a Bienal de Arte de São Paulo )

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